A amplitude da imunidade tributária das entidades sem fins lucrativos
Por: Daniel Prochalski* e Leticia Staroi*
Diversamente das isenções – que são desonerações infraconstitucionais, previstas na legislação do respectivo ente – as imunidades tributárias se constituem em hipóteses de não incidência constitucionalmente qualificadas e, nessa condição, representam autênticas limitações constitucionais ao poder de tributar.
Por esta razão, as imunidades devem ser interpretadas de forma ampla, com vistas a atender os valores constitucionais por ela tutelados, não sendo válida, portanto, a tese de que devam ser interpretadas “restritivamente” ou “literalmente”, como ocorre com as isenções, a teor do art. 111, II do Código Tributário Nacional, regra controversa por estabelecer amarras hermenêuticas ao aplicador da norma isencional, ao dispor de forma imperativa que “Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: (…)II – outorga de isenção”.
O texto constitucional (art. 150, inciso VI, alínea “c” da CF/88) utiliza, quando versa sobre diversos casos de imunidade relativa a impostos, a expressão “patrimônio, renda ou serviços”, como é o caso da imunidade aplicável às instituições de assistência social sem fins lucrativos, objeto deste artigo.
Como já demonstrado acima, o referido texto não deve ser analisado sob o seu aspecto literal, isto porque a expressão “patrimônio, renda ou serviços” deve ter uma interpretação bem mais ampla, para que sejam desoneradas todas as demais hipóteses passíveis de serem oneradas por impostos, bastando que a entidade faça prova de que não existe desvio de finalidade na respectiva operação. Ou seja, a imunidade está condicionada tão-somente à prova de que os efeitos econômicos dos atos praticados foram e são revertidos para a consecução da finalidade assistencial, conforme prevista em seu estatuto.
Por conta desta análise extensiva, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em repercussão geral (Recurso Extraordinário n°. 630790), que as entidades religiosas podem se beneficiar da imunidade tributária conferida às instituições de assistência social, abrangendo além dos impostos sobre “patrimônio, renda e serviços”, os tributos sobre a importação de bens a serem utilizados na consecução de seus objetivos estatutários.
Neste caso, o RE foi interposto pela Associação Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, em face de decisão do TRF da 3° Região, que no julgamento do recurso entendeu inaplicável a imunidade tributária referente ao Imposto de Importação – II e ao Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI sobre a importação de papel especial para impressão de bíblias, entre outros bens, por entender que essas atividades institucionais não se caracterizariam como assistência social.
Contudo, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, fez questão de destacar que a imunidade não deve ser restrita ao patrimônio, à renda ou aos serviços decorrentes, frisando que ela abrange, também, eventuais propósitos paralelos, desde que os valores obtidos sejam revertidos à consecução dos seus objetivos sociais. Ou seja, desde que os recursos oriundos da atividade exercida pelo ente imune sejam destinados às suas finalidades essenciais, então a renda assim auferida não poderá ser atingida pelo imposto.
Assim, o Tribunal acompanhou o relator para dar provimento ao recurso, por reconhecer a finalidade assistencial da entidade religiosa e o seu direito à imunidade, inclusive em relação aos impostos incidentes sobre as importações de produtos a serem utilizados nas atividades assistenciais.
Esta decisão é relevante por consolidar um entendimento que felizmente já vinha sendo adotado pelo STF em decisões anteriores – como é exemplo a brilhante decisão proferida no RE nº 203.755[1], no qual foi garantida a imunidade em relação ao ICMS na importação de computadores para o ativo imobilizado de uma instituição de educação sem fins lucrativos – mas que a partir de agora deverá ser observado de forma vinculante pelas instâncias inferiores, em virtude do julgamento ter sido realizado no regime da repercussão geral.
Embora não mencione diretamente, a decisão lembra, ainda, que a referida imunidade deve abranger outras operações que podem ser praticadas pelas entidades assistenciais, como é exemplo frequente a venda de produtos artesanais ou alimentos, bastando que a entidade demonstre, em documentos fiscais e contábeis, que os recursos auferidos são direcionados às finalidades filantrópicas previstas em seus atos constitutivos, de modo a incentivar a criação e favorecer a manutenção destas entidades.
Nesse sentido, tendo em vista a atribuição de competência à lei complementar para regular as limitações constitucionais ao poder de tributar, prevista no art. 146, II da CF/88, o fisco não pode estabelecer condições para usufruir a imunidade diversas dos requisitos dispostos no art. 14 do Código Tributário Nacional:
Art. 14. O disposto na alínea c do inciso IV do artigo 9º é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:
I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; (Redação dada pela Lcp nº 104, de 2001)
II – aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;
III – manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.
(…).
A imunidade, portanto, deve abranger não só os impostos cujas materialidades sejam “deter patrimônio” (como IPTU ou ITR), “auferir renda” (IR) ou “prestar serviço” (ISS ou ICMS nos serviços de competência estadual), mas também, obviamente, todas as demais situações passíveis de tributação por meio desta espécie tributária, como é o caso, portanto, do ICMS[2] sobre as referidas vendas de produtos pelas instituições filantrópicas.
Como ensina Luis Eduardo Schoueri, “ainda que, juridicamente, o imposto possa incidir sobre uma transmissão de bens ou sobre uma operação de circulação de mercadorias, economicamente todo imposto atingirá patrimônio, renda ou serviços”.[3]
Ora, a venda de produtos nessa condição não se qualifica como operação “empresarial” ou “mercantil”, especialmente por não haver finalidade lucrativa, e, assim, tais bens não se qualificam, juridicamente, como “mercadorias”, elemento que está presente na materialidade contida no art. 155, II da CF/88, dispositivo que atribui competência aos Estados e ao Distrito Federal para instituir o ICMS.
Quem nos esclarece a questão é Roque Antonio Carrazza, em sua renomada obra “ICMS”, ao demonstrar que as operações com “mercadorias”, de que trata a materialidade constitucional, exigem a presença da finalidade lucrativa[4]:
“(…) para que um ato configure uma operação mercantil é mister que: a) seja regido pelo direito comercial; b) tenha sido praticado num contexto de atividades empresariais; c) tenha por finalidade, pelo menos em linha de princípio, o lucro (resultados econômicos positivos); e d) tenha por objeto uma mercadoria.”
“Remarcamos, em remate, que a) a mercadoria é essencialmente vendida com o fito de lucro (a venda mercantil) é feita para especular); e b) o ICMS incide sobre os negócios jurídicos regidos pelo direito comercial que acarretam circulação de mercadoria.”
Ainda, como os resultados positivos obtidos por uma instituição filantrópica são (e devem ser) revertidos para as finalidades estatutárias, não são qualificados como “lucro”, mas tão-somente representam um superávit nas demonstrações contábeis.
Em outras palavras, pode-se dizer que eventual instituição filantrópica que desenvolva uma atividade como a de uma lanchonete, ou a revenda de quaisquer produtos, está atuando em um ambiente de direito público, distante do mundo concorrencial do livre comércio, o qual é caracterizado, sabidamente, pelos interesses empresariais, exclusivamente privados.
Ora, se a referida instituição, como associação de assistência social sem fins lucrativos, atua em pé de igualdade com os entes políticos (União. Estados, Distrito Federal e Municípios), cumprindo funções que lhe são próprias, ela deve, igualmente, estar a salvo de qualquer tributação.
Qualquer conclusão em sentido contrário importa em indevida oneração do patrimônio das instituições filantrópicas, em prejuízo do desenvolvimento de suas elevadas finalidades sociais e estatutárias. Como resultado, ofende-se a própria finalidade da regra imunizante, a razão de existir (teleologia) da norma constitucional, que é proteger e favorecer a prestação dos direitos sociais desenvolvidos por estas entidades.
A jurisprudência do STF é convergente com os sólidos argumentos até aqui defendidos, conforme ilustra a seguinte decisão, proferida nos Embargos de Divergência no RE nº 210.251, em que a entidade “Instituição beneficente Lar de Maria” obteve a imunidade sobre a venda de pães.
EMENTA: Recurso extraordinário. Embargos de Divergência. 2. Imunidade tributária. Art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal. 3. Entidades beneficentes. Preservação, proteção e estímulo às instituições beneficiadas. 4. Embargos de divergência rejeitados (RE 210251 EDv, Relator(a): ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão: GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 26/02/2003, DJ 28-11-2003 PP-00025 EMENT VOL-02134-02 PP-00347)
É relevante verificar que a tese favorável ao fisco paulista, defendida pela relatora, então Ministra Ellen Gracie, não foi acolhida pela maioria, tendo prevalecido o voto favorável à entidade, proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, que rejeitou o argumento de que a imunidade seria afastada devido à alegação de que o ICMS, por ser “imposto indireto”, seria repassado aos consumidores finais.
Conclui-se, portanto, que a Corte Constitucional tem admitido e prestigiado a tese de que a imunidade do art. 150, VI, ‘c” da CF/88 abrange o ICMS nas operações praticadas pelas entidades assistenciais sem fins lucrativos, uma vez que – comprovado que os resultados não são destinados aos associados ou diretores – são desenvolvidas de maneira a viabilizar o atingimento das finalidades essenciais previstas em seus estatutos.
Daniel Prochalski* – Advogado (OAB/PR nº 22.848), com ampla atuação e experiência nas áreas de Direito Tributário e Societário; Especialista em Direito Tributário e Processual Tributário (PUC-PR). Mestre em Direito Empresarial / Tributário (Unicuritiba).
Leticia Staroi* – Advogada do escritório Prochalski, Staroi & Scheidt – Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário (Faculdade Ibmec SP). Especialista em Direito Civil e Processo Civil (Cátedra Cursos e Soluções jurídicas).
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[1] EMENTA: – CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. INSTITUIÇÃO DE EDUCAÇÃO SEM FINS LUCRATIVOS. C.F., art. 150, VI, “c”. I. – Não há invocar, para o fim de ser restringida a aplicação da imunidade, critérios de classificação dos impostos adotados por normas infraconstitucionais, mesmo porque não é adequado distinguir entre bens e patrimônio, dado que este se constitui do conjunto daqueles. O que cumpre perquirir, portanto, é se o bem adquirido, no mercado interno ou externo, integra o patrimônio da entidade abrangida pela imunidade. II. – Precedentes do STF. III. – R.E. não conhecido. (RE 203755, Relator(a): CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 17/09/1996, DJ 08-11-1996 PP-43221 EMENT VOL-01849-08 PP-01727)
[2] ICMS – Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior.
[3] SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito Tributário. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 411.
[4] CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 44 e p. 48.