Receita Federal publica instrução normativa com atualizações na tributação dos produtores rurais
Por: Daniel Prochalski*
Em 09/04/2024, a Receita Federal do Brasil (RFB) publicou a Instrução Normativa RFB nº 2.185, alterando dispositivos da Instrução Normativa RFB nº 2.110/2022 que, por sua vez, dispõe sobre as normas gerais de tributação previdenciária.
Dentre as alterações advindas com a IN RFB nº 2.185, destacamos neste artigo duas que são relevantes para os produtores rurais.
1. Não incidência da contribuição ao salário-educação para os produtores rurais pessoas físicas sem inscrição no CNPJ
A primeira alteração inclui o § 3º no art. 96 da IN RFB nº 2.110/2022, para dispor que:
“Art. 96. (…). § 3º O produtor rural pessoa física sem inscrição no CNPJ não é sujeito passivo da contribuição para o salário-educação. (Parecer SEI nº 5899/2022/ME, aprovado por despacho do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, de 16/10/2023; Parecer SEI nº 4090/2023/MF)”
Consultando o Parecer SEI nº 4090/2023/MF, que fundamentou a inclusão do dispositivo, verifica-se que a PGFN entendeu que a inexigibilidade da contribuição ao salário-educação para o produtor rural pessoa física constitui matéria pacificada em ambas as turmas de Direito Público do Superior Tribunal de Justiça.
Note-se, contudo, que a condição para a não incidência é a inexistência de inscrição no CNPJ, o que presumiria, na visão do STJ, a qualificação do produtor rural como “empresário” e, assim, sua subsunção à materialidade do tributo, tal como prevista no art. 15 da Lei nº 9.424/96:
“Art 15. O Salário-Educação, previsto no art. 212, § 5º, da Constituição Federal e devido pelas empresas, na forma em que vier a ser disposto em regulamento, é calculado com base na alíquota de 2,5% (dois e meio por cento) sobre o total de remunerações pagas ou creditadas, a qualquer título, aos segurados empregados, assim definidos no art. 12, inciso I, da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.”
Além da jurisprudência do STJ, o Parecer SEI nº 4090/2023/MF foi motivado pelo fato do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Tema nº 910 de Repercussão Geral, ter entendido que “a questão não ostenta contornos constitucionais, de tal sorte que eventual ofensa ao texto da Carta, se existisse, seria meramente indireta ou reflexa, o que inviabiliza a sua submissão, via recurso extraordinário, à apreciação do Tribunal”
Assim, entendeu a PGFN pela inviabilidade de reversão do entendimento desfavorável à União, o que, em boa e louvável medida, motivou a inclusão da matéria em uma instrução normativa, conferindo, assim, eficácia geral do direito a todos os produtores rurais, prestigiando princípios tributários como da legalidade e isonomia.
Como resultado, além do direito de não mais recolher o salário-educação a partir da competência de abril/2024, conclui-se que a previsão da não incidência na instrução normativa autoriza os contribuintes a pedirem administrativamente a restituição ou a compensação dos valores recolhidos nos últimos cinco anos.
Para aqueles contribuintes com ações judiciais em andamento, registre-se que o parecer resulta na dispensa à apresentação de contestação, o oferecimento de contrarrazões, a interposição de recursos, bem como a desistência dos já interpostos, desde que, atente-se, o produtor rural não esteja exercendo sua atividade, total ou parcialmente, como empresário com inscrição no CNPJ.
2. Alegada adequação do conceito de parceria rural à Lei nº 11.443/2007
A IN RFB 2.185 também alterou a definição fiscal para o contrato de parceria rural, mediante nova redação ao inciso XI do art. 146 da IN RFB 2.110/2022.
A redação anterior ainda definia a parceria rural a partir do conceito constante do art. 4º do Decreto nº 59.566/1966. Ocorre que o conceito deste tipo contratual já tinha sido alterado há mais de 17 (dezessete)anos (!!!) pela Lei nº 11.443/2007, que incluiu os §§ 1º ao 5º no art. 96 da Lei nº 4.504/1964, o “Estatuto da Terra”.
Dentre tais parágrafos, releva destacar a redação dos §§ 1º ao 3º (grifamos):
“Art. 96. (…).
§ 1º Parceria rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso específico de imóvel rural, de parte ou partes dele, incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e/ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa vegetal ou mista; e/ou lhe entrega animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias-primas de origem animal, mediante partilha, isolada ou cumulativamente, dos seguintes riscos:
I – caso fortuito e de força maior do empreendimento rural;
II – dos frutos, produtos ou lucros havidos nas proporções que estipularem, observados os limites percentuais estabelecidos no inciso VI do caput deste artigo;
III – variações de preço dos frutos obtidos na exploração do empreendimento rural.
§ 2º As partes contratantes poderão estabelecer a prefixação, em quantidade ou volume, do montante da participação do proprietário, desde que, ao final do contrato, seja realizado o ajustamento do percentual pertencente ao proprietário, de acordo com a produção.
§ 3º Eventual adiantamento do montante prefixado não descaracteriza o contrato de parceria.
(…)”.
Vejamos, agora, a nova redação ao inciso XI do art. 146 da IN RFB 2.110/2022, para concluir se a Receita Federal observou o texto da lei:
“Art. 146. Considera-se: (…).
XI – parceria rural, o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder a outra, por tempo determinado ou não, o uso específico de imóvel rural, de parte ou partes dele, incluindo benfeitorias, outros bens ou facilidades, caso haja, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa vegetal ou mista ou a entregar animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias-primas de origem animal, mediante partilha, de forma isolada ou cumulativa, dos seguintes riscos: (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964, art. 96, § 1º)
a) caso fortuito e de força maior do empreendimento rural;
b) dos frutos, produtos ou lucros havidos nas proporções que estipularem, observados os limites percentuais estabelecidos no inciso VI do caput do art. 96 da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964;
c) das variações de preço dos frutos obtidos na exploração do empreendimento rural.”
Comparando os textos da lei com a regulamentação feita pela instrução normativa, conclui-se que a regulamentação feita pela Receita Federal incorreu em manifesta ilegalidade.
Ora, o art. 96, § 1º da Lei nº 4.504/64, em sua atual redação, é expresso em permitir que no contrato de parceria rural o parceiro outorgante se obrigue a ceder ao parceiro outorgado o uso de um imóvel rural, “incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e/ou facilidades”.
Ou seja, não desnatura a parceria rural o fato de o parceiro outorgante participar do contrato apenas com a cessão do imóvel rural, não podendo exigir que, além disso, explore diretamente a atividade rural ou contribua com insumos e equipamentos.
O próprio art. 96 da Lei nº 4.504/64, em seu inciso VI, “a”, confirma esse direito, ao dispor que “VI – na participação dos frutos da parceria, a quota do proprietário não poderá ser superior a: a) 20% (vinte por cento), quando concorrer apenas com a terra nua;”.
A ilegalidade reside na nova redação do inciso XI do art. 146 da IN RFB 2.110/22, pois ao definir a parceria rural, estabelece que neste contrato agrário uma pessoa se obriga a ceder a outra, por tempo determinado ou não, o uso específico de imóvel rural, de parte ou partes dele, “incluindo benfeitorias, outros bens ou facilidades”, ou seja, se afastando da redação da lei que prevê a expressão “incluindo, ou não benfeitorias…”, com o que parece querer impedir como parceria o contrato que preveja apenas a cessão da terra nua.
O contrato de parceria diferencia-se do arrendamento rural justamente pela existência do risco assumido pelo proprietário do imóvel rural, o que justifica, inclusive, que apenas a parceria receba o tratamento como atividade rural perante o imposto de renda – ou seja, permitindo a dedução das despesas e investimentos ou a opção pelo resultado presumido de 20% (vinte por cento), nos termos da Lei nº 8.023/90 – cabendo ao arrendamento, por sua vez, a tributação dos rendimentos nos mesmos moldes de uma locação, o que é bem mais oneroso.
Note-se, portanto, que apesar de estar prevista em uma instrução normativa que trata de tributação previdenciária, esta definição fiscal de parceria rural produz efeitos também perante a legislação do imposto de renda.
No entanto, a IN RFB 2.185/2024 deveria ter regulamentado integralmente o regime jurídico da parceria rural, observando com maior rigor o art. 96 e parágrafos da Lei nº 4.504/64. Em especial, pensamos que a instrução normativa deveria ter previsto o direito de prefixação da participação do parceiro outorgante, ou o adiantamento deste montante, sem que isso desnature o contrato de parceria, desde que “ao final do contrato, seja realizado o ajustamento do percentual pertencente ao proprietário, de acordo com a produção”, como garantem os §§ 2º e 3º do precitado art. 96.
Lembre-se que o direito tributário é um ramo de sobreposição, e o art. 110 do Código Tributário Nacional prestigia essa condição ao dispor que:
“Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
Tendo o conceito de contrato de parceria sido definido no âmbito do direito privado, pelo Estatuto da Terra, nem mesmo uma lei tributária poderia estabelecer conceitos que se afastassem da definição prevista naquele diploma legal. O que dizer então de uma instrução normativa, que se constitui em mera norma infralegal?
Admite-se que a instrução normativa foi benéfica, ao reproduzir em seu texto uma das hipóteses de risco prevista no Estatuto da Terra: as “variações de preço dos frutos obtidos na exploração do empreendimento rural”, o que se constitui em fenômeno comum na produção das commodities rurais.
Estabelecida estas premissas, ainda que a IN RFB nº 2.185/2024 represente algum avanço, salta aos olhos que mesmo depois de tantos anos após o advento da Lei nº 11.443/2007, a Receita Federal ainda não tenha normatizado devidamente o regime jurídico do contrato de parceria, o que conferiria aos produtores rurais uma maior e necessária segurança jurídica.
*Advogado (OAB/PR nº 22.848), com atuação nas áreas de Direito Tributário e Societário; Especialista em Direito Tributário e Processual Tributário (PUC-PR). Mestre em Direito Empresarial / Tributário (Unicuritiba).