STF reafirma entendimento pela não incidência de ICMS entre estabelecimentos do mesmo contribuinte
Por: Daniel Prochalski* e Letícia Staroi*
O Plenário do Supremo Tribunal Federal – STF, reiterando jurisprudência sobre a matéria, julgou improcedente, por unanimidade, a Ação Declaratória de Constitucionalidade – ADC nº 49, proposta pelo Governo do Rio Grande do Norte, que pretendia validar os dispositivos da Lei Complementar nº 87/96, a chamada “Lei Kandir” que estabelecem a incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na transferência interestadual de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo contribuinte.
Com a decisão, restou declarada a inconstitucionalidade dos artigos 11, parágrafo 3º, inciso II, 12, inciso I, no trecho “ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular”, e 13, parágrafo 4º, todos da referida LC 87/1996.
O relator da ação, o ministro Edson Fachin, lembrou que o Plenário do STF, em agosto do ano passado, no julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1255885, apreciando o Tema 1099 da Repercussão Geral, já havia decidido nesse sentido, tendo na ocasião sido firmada a seguinte tese: “Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia“.
Ou seja, o STF ratificou o entendimento de que o mero deslocamento físico de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, sem circulação jurídica, seja na mesma unidade federada ou em unidades diferentes, não implica em ato mercantil e, assim, não se qualifica como fato gerador do ICMS, o qual somente ocorre na operação praticada por comerciante que resulte na circulação de mercadoria e transmissão de sua titularidade ao consumidor final.
A decisão do STF é acertada e contribui para a segurança jurídica em relação ao tema.
Lembre-se que o Superior Tribunal de Justiça – STJ já possui entendimento pacificado nesse sentido há décadas, conforme se vê na jurisprudência cristalizada na Súmula nº 166, pela qual “Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte” (Primeira Seção, em 14.08.1996 DJ 23.08.1996, p. 29.382).
E no julgamento do REsp nº 1.125.133/SP (publicado em 10/09/2020, relator o então Ministro Luiz Fux), o STJ também decidiu no mesmo sentido, pelo regime previsto no art. 543-C do antigo CPC, ou seja, sob o rito dos recursos repetitivos.
De qualquer forma, a decisão proferida na ADC 49 é importante por ter analisado os dispositivos da lei nacional em vigor – uma vez que a Súmula 166 foi editada a partir de comandos do revogado Decreto-Lei nº 406/1968 – e de ter efeitos erga omnes, ou seja, passa a valer como norma geral no país para todas as operações.
Um detalhe importante: tendo a decisão declarado a não incidência do ICMS, não haverá legitimidade em eventual tese fazendária que defenda a aplicação da regra prevista no art. 155, parágrafo 2º, inciso II da CF/88, pela qual: “II – a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação: a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes; b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores“.
Pelo que se vê do texto, a Lei Maior possui regra expressa para o ICMS, de que se houver “isenção” ou “não-incidência” em uma das fases da circulação mercantil (saída), será necessário o estorno do crédito pelas entradas correspondentes, ressalvada a expressa previsão de manutenção na legislação estadual. Com isso, o benefício tributário pode resultar em aumento da carga tributária ao final da cadeia econômica.
No entanto, não é válida a interpretação literal e descontextualizada da expressão “não-incidência” contida no precitado dispositivo, que não tem qualquer relação com a inexistência de fato gerador do ICMS no caso julgado pelo STF. Com muito mais razão, também não há dúvida de não se tratar de isenção nesse caso.
E isso por uma razão muito simples: os meros deslocamentos de bens entre estabelecimentos da mesma empresa não se subsumem ao conceito das “operações” mencionadas nas alíneas “a” e “b” transcritas acima, sejam as “seguintes” ou as “anteriores”.
Ou seja, não há que se falar em qualquer “operação de saída”, para efeito de ICMS, havendo apenas uma movimentação física dentro da mesma pessoa jurídica, sem transferência de titularidade, o que mantém o direito ao crédito, o que, de resto, também é exigência inafastável do princípio da não-cumulatividade, conforme prevê o art. 155, § 1º, inciso I da CF/88, pelo qual o imposto estadual “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal“.
E a legitimidade desta tese pode ser validada pela jurisprudência do próprio STF. No Recurso Extraordinário nº 1.141.756, julgado sob o regime da repercussão geral (Publicação em 10/11/2020), foi fixada a seguinte tese: “Observadas as balizas da Lei Complementar nº 87/1996, é constitucional o creditamento de Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias – ICMS cobrado na entrada, por prestadora de serviço de telefonia móvel, considerado aparelho celular posteriormente cedido, mediante comodato“.
O Relator, Ministro Marco Aurélio, afirmou que “a saída física de máquinas, utensílios e implementos, a título de comodato, não constitui fato gerador de ICMS. Inexiste etapa a integrar as sucessivas transferências do produtor ao consumidor. Ausente operação de saída, descabe cogitar de situação reveladora de exoneração tributária – isenção ou não incidência –, a fim de impedir-se o aproveitamento dos créditos, conforme as balizas versadas no preceito“.
Como se vê, ainda que a situação julgada não seja a mesma, na essência a controvérsia é idêntica, a exigir a aplicação da mesma ratio decidendi: também nos casos de mero deslocamento de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, não há fato gerador do ICMS, não havendo que se falar em “isenção ou não-incidência” para os efeitos do art. 155, § 2º, inciso II da CF/88.
*Daniel Prochalski – Advogado (OAB/PR nº 22.848), com ampla atuação e experiência nas áreas de Direito Tributário e Societário; Especialista em Direito Tributário e Processual Tributário (PUC-PR). Mestre em Direito Empresarial / Tributário (Unicuritiba). Autor de artigos jurídicos e do livro “ISS – Regra Matriz de Incidência e Conflitos de Competência” (Editora Juruá).
*Leticia Staroi – Advogada do escritório Prochalski, Staroi & Scheidt – Advogados Associados. Pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil (Cátedra Cursos e Soluções jurídicas) e Pós-graduanda em Direito Tributário (Faculdade Ibmec SP).